PL 3/2024: Uma gritante irresponsabilidade legislativa

Testemunhamos, há poucos dias, uma grave irresponsabilidade legislativa promovida pela Câmara dos Deputados. Em incompreensível tramitação de urgência determinada pelo Executivo, os congressistas aprovaram o Projeto de Lei 3/2024, que traz não apenas uma série de mudanças no tema da insolvência empresarial, mas que ignora e, também, subverte o contexto sob o qual se erigem as normas vigentes.

Antes de tudo, precisamos recuperar esse contexto: as regras de falência se destinam a organizar as consequências de um caso de insucesso empresarial. A falência é decretada pelo Judiciário a partir do pedido da própria empresa ou da provocação de algum credor.

Simplificadamente, após a decretação: liquidam-se os ativos da companhia; apuram-se os passivos; listam-se os credores na ordem de preferência estabelecida por lei; realizam-se os pagamentos até o limite do que o patrimônio da falida permitir; averiguando-se eventuais ilicitudes e responsabilidades excepcionais em paralelo; e, esgotado o patrimônio arrecadado, encerra-se o processo judicial.

São atos para cuja coordenação e realização o Judiciário conta com serviços prestados por um terceiro, o Administrador Judicial (antigo síndico), remunerado em até 5% do ativo realizado.

Parece seguro afirmar que a sociedade e profissionais atuantes em ações de insolvência concordam que, historicamente, processos de falência foram marcados por morosidade, longo tempo de duração e global frustração de expectativas. Sob a ótica dos credores, insatisfação quanto à espera para receber seus créditos e quanto aos valores efetivamente recuperados (quando recuperados). Para os sócios da falida, insatisfação pela extensão dos desdobramentos da falência (por vezes fatais), tolhendo-os de voltar a empreender e tentar êxito em novas investidas.

Imperioso ressaltar que, recentemente, novidades como processos eletrônicos, leilões virtuais, sistemas interligados, entre outros, surtiram reflexos positivos também na tramitação de falências. Além disso, a Lei 11.101/2005, que versa sobre o tema, recebeu importantes modernizações em 2021.

Houve acréscimo de previsões que otimizam a satisfação dos anseios de credores e empreendedores, dando melhores contornos à tramitação desses processos. O Judiciário, no mesmo período, tem formado mais juízes e servidores especializados na matéria e instalado varas regionais igualmente especializadas, fazendo com que as ações sejam julgadas por profissionais cada vez mais familiarizados com o universo envolvido de práticas, precedentes e implicações.

Ou seja: com melhores ferramentas tecnológicas, normas e estrutura judicial, aqueles que atuam em processos de falência são testemunhas uníssonas de que se vive uma nova realidade, muito mais propícia para que tais ações atinjam os resultados esperados.

E um elemento indissociável a enaltecer em adição a essa delicada equação do desejo coletivo por falência mais satisfatórias é o profissional prestador de serviços de Administração Judicial, principal vítima direta do PL 3/2024 (que vitima, indiretamente, todo o sistema de regimes de insolvência). São profissionais com atuação de altíssima especificidade e recorrente complexidade, nos quais se depositam exigências acentuadas de conhecimento, técnica, organização, acuracidade, recursos, multidisciplinaridade e multifuncionalidade.

Em tempos remotos, poderia se aceitar que a nomeação para síndico de massa falida recaísse sobre um advogado com escritório tradicional de segmento não delimitado ao âmbito empresarial e que, pontualmente, exercesse aquele ofício. Modernamente, é impensável que qualquer falência seja conduzida sem uma estrutura profissional de Administração Judicial, com equipe e aparelhamento robustos, bem como dedicação exclusiva a esse serviço, que implica, inclusive, pesado investimento em diferenciação.

Em outras palavras: o contexto estabelecido até o momento atual fez surgir no mercado Administradores Judiciais estruturados, qualificados e experimentados, capazes de efetivas entregas em prol da contínua melhoria do sistema de regimes de insolvência. Seus resultados podem e poderão ser aferidos em recentes casos de falência e provarão o salto evolutivo atingido ante as insatisfações históricas (lembrando-se que os principais implementos legislativos entraram em vigor em 2021).

Assim, chegamos ao PL 3/2024. O pronunciamento da relatora do texto é de causar assoladora vergonha alheia, em mais um duro golpe na esperança em representantes eleitos comprometidos com o bem comum e imbuídos da responsabilidade com a fidedignidade daquilo que proferem em tribuna.

Disse a parlamentar: “me pergunto se um administrador judicial consegue pôr sua cabeça no travesseiro sabendo que sua remuneração impediu um processo de ser concluído e impediu centenas, milhares, de trabalhadores de liquidarem suas posições e receber o que lhes é de direito”.

Uma desinformação brutal e ofensiva, pois, como esclarecido anteriormente, a remuneração do AJ possui teto em 5% do ativo realizado. Na contramão da prestação de serviços de excelência demandada em ações falimentares, cabe grifar que o PL retira a mínima estabilidade e previsibilidade de atuação e de remuneração para os profissionais que pretendem prosseguir com os serviços na matéria, podendo ser substituídos por gestores fiduciários (nova figura, não escolhida por um juiz, mas pelos credores com representatividade em volume de créditos – a rigor, grandes bancos e agentes financeiros), bem como desestimulantes interstícios entre nomeações e invencíveis vinculações sob risco de severas penalizações.

Para dizer o mínimo, o conteúdo do PL exigiria amplo diálogo com operadores do direito especialistas em falências, sem qualquer razão para tramitar em urgência. Todos os contrapontos e suas devidas fundamentações mereciam voz, atenção e cuidado junto ao Congresso Nacional (não por acaso, protestos volumosos e unânimes propagaram-se em veículos especializados), desafiando discursos pueris e maliciosos como o que a relatora semeou entre seus pares.

O que advirá das alterações propostas, sendo validado como está o PL, é nada menos do que um desastre, um retrocesso para os avanços colhidos nos últimos anos, de prejuízos ainda inestimáveis. Lamentavelmente, contudo, é esperado que a excelsa relatora e demais deputados que embarcaram na irresponsabilidade legislativa em pauta não encontrem qualquer dificuldade em pôr suas cabeças em seus travesseiros, assim como os titulares do Executivo que fulminaram o imprescindível debate.

 

Eduardo Grangeiro
Advogado, especialista em crise empresarial no SCA – Scalzilli Althaus