Recuperação judicial: cautela sobre decisão do STJ

Ao final de 2016, o Superior Tribunal de Justiça surpreendeu destinatários e operadores da Lei de Recuperação Judicial, julgando favoravelmente o recurso especial 1.532.943/MT. Com essa decisão, o STJ validou cláusula de plano aprovado de recuperação judicial que previra a liberação/desvinculação de avalistas e fiadores, abrangendo todos os contratos da empresa, mesmo os detidos por credores que haviam manifestado ressalva à disposição. Inédito, o resultado foi comemorado principalmente por sócios de empresas em crise – os quais, em regra, se veem compelidos a ocupar posições de garantidores em muitos dos contratos celebrados.

A decisão não contou com unanimidade de votos entre os ministros, tendo um deles firmado entendimento dissonante. Bancos credores titulares de contratos garantidos por coobrigados, como avais e fianças, pediram esclarecimentos ao STJ via embargos de declaração. Alegaram incongruências de fundamentação no veredicto, almejando sua reversão, mas o resultado acabou mantido, novamente por maioria. As instituições financeiras persistiram na tentativa de alterar o julgado, apresentando recursos de embargos de divergência, ainda pendentes de enfrentamento.

O imbróglio recursal está longe do seu ponto final. Porém, uma atenta análise ao conteúdo dos votos proferidos parece revelar ser ilusória a impressão de que a decisão do STJ contemplaria a possibilidade de estipular liberação de garantidores em planos de recuperação judicial.

Após proferir voto inaugural pelo provimento do recurso especial, o ministro relator foi confrontado pelo voto contrário de outro ministro. Então, ofereceu resposta intitulada de “ratificação”. Ocorre que, ao invés de confirmar seu entendimento, o relator passou a denotar posicionamento muito mais restritivo em relação ao que manifestara inicialmente. Destacou que os garantidores beneficiados pela cláusula aprovada e chancelada pelo juízo seriam somente os que figurassem como partes envolvidas na ação de recuperação judicial. Ou seja, seria mantida a autorização aos credores para livre prosseguimento das cobranças contra avalistas e fiadores em geral.

Tal delimitação altera radicalmente a interpretação da cláusula cuja validação fora comemorada – que, na sua redação, não estipulara distinção. Faz com que a proteção a sócios garantidores e afins deixe de existir, ficando adstrita às hipóteses das chamadas garantias cruzadas, quando duas ou mais empresas (grupos econômicos) pedem sua recuperação judicial conjuntamente e se encontram na condição de avalistas/fiadoras umas das outras.

Essa distância de sentidos entre o voto inaugural do ministro relator e a posterior “ratificação” emanada pelo próprio chegou a causar desconforto em um dos demais julgadores, que classificou a situação como uma contradição insanável.

Acentuando a complexidade, sequer fica claro se os ministros que votaram aderindo ao posicionamento do relato em favor do recurso especial partilham, de fato, da compreensão manifestada em seu voto original (abrangente) ou daquela depreendida da “ratificação” (restritiva). Somente com o julgamento dos embargos de divergência pendentes, teremos condições de avaliar o que pretenderam os desembargadores e qual será a efetiva posição do STJ a respeito.

Em termos de repercussão do recurso especial, a temeridade decorrente do contexto apresentado parece não ter ganho qualquer notoriedade. O julgamento foi noticiado com enfoque estrito na interpretação benéfica aos coobrigados, recebendo dedicação de diversas publicações especializadas e já influenciando, inclusive, decisões de primeira e segunda instâncias.

Resta um cenário de frustrantes incertezas, sobretudo porque muitos profissionais do Direito têm atuado em defesa de um tratamento mais justo aos garantidores/coobrigados de empresas que se socorrem da recuperação judicial. Sustentam argumentos qualificados, com coerência e solidez técnica, na luta por um respaldo do Poder Judiciário, concretizado em decisões exatamente como a que transpareceu ser a do recurso especial 1.532.943/MT.

Contudo, a partir da leitura dos votos que compõem o acórdão em questão, fica a impressão de que, ainda que venha a ser confirmado, sobrevivendo aos últimos recursos interpostos pelas instituições financeiras, não servirá como precedente hígido ou digno de confiabilidade. Infelizmente, a conclusão alcançada é a de que o veredicto falhará na básica missão de traduzir com coesão e precisão a deliberação do STJ acerca da matéria julgada.

Artigo publicado no Valor Econômico

Advogado especialista em Recuperação Judicial da Scalzilli Althaus