Abuso de voto na recuperação judicial

À primeira vista, soam contundentes as palavras vociferadas no relatório do Banco Mundial, publicado em abril de 2001 e tido como a cartilha basilar para a elaboração da nova Lei de Falências e Recuperação Judicial brasileira, quando propugnou que “o sistema falimentar também deve se resguardar contra credores que tiverem o objetivo de utilizar a iminência na decretação da quebra como um mecanismo de extorsão contra empresas viáveis”.

Entretanto, passados quase sete anos desde o advento da novel legislação, inequívoco concluir que o relatório apresentado em 2001 acertara na medida de suas colocações que, se anteriormente eram tidas como excessivas, agora revelam sua razoabilidade. Isso porque, muito embora inste reconhecer a importância do exercício do direito de voto na assembleia geral de credores, como inclusive outrora sustentado pelos autores em artigo específico, deve-se considerar que o papel de primordialidade dos credores concedido pela nova legislação não afasta o império da lei.

Sabe-se que a legislação estabeleceu no artigo 58, parágrafo 1º, a figura do “cram down” (aprovação forçada) como instituto que prevê a imposição da aprovação a despeito do dissenso de credores, possibilitando a concessão da recuperação judicial pelo magistrado superintendente do processo recuperacional mesmo quando não observada a maioria em cada categoria de credores, desde que observadas as quatro condicionantes da lei. No entanto, a rigidez do instituto acabou por criar um mero quórum alternativo de aprovação do plano de recuperação judicial, olvidando o real propósito de preservar as empresas importantes e relevantes no âmbito social, conforme previsto pela codificação alemã de 1985.

A rigidez da lei criou um mero quórum alternativo para aprovação de plano

Por outro lado, são recorrentes os casos no cenário nacional em que apenas um credor detém singularmente o controle absoluto ou a totalidade dos votos de determinada classe, inviabilizando até mesmo a prática do cram down na forma delineada em lei. Situação que enseja a perplexidade de vários juristas.

Nesse ponto, o leitor mais atento já se apercebeu que se o ordenamento pátrio veda ao juiz “o non liquet” (escusa de decidir pela insuficiência de elementos fáticos ou jurídicos), a insuficiência do cram down não pode ser dada como resposta.

E é por isso que a doutrina e, mais vagarosamente, a jurisprudência, já reconhecem a necessidade de extensão da figura do cram down para hipóteses nas quais o juízo de proporcionalidade entre os princípios da preservação da atividade empresarial viável e da participação ativa dos credores sinalize a necessidade de prevalência do primeiro. Nessa equação nem sempre exata, as considerações acerca da relevância e importância da empresa em questão são assaz pertinentes.

Retomando a paráfrase do Banco Mundial, outra via passível de ponderação pelo magistrado aloca-se precisamente na identificação do denominado “mecanismo de extorsão de empresas viáveis”. Nesses casos, não se exige inovação jurídica ou soluções mirabolantes para suprir a lacuna legal, bastando a aplicação de dispositivos já existentes no Código Civil atinentes ao abuso de direito e na Lei das Sociedades Anônimas relativos à responsabilidade do acionista controlador para que se identifique uma solução equânime. Solução, aliás, há tempos propugnada pela doutrina mais abalizada, representada por Erasmo Valladão Azevedo Novaes e França e Mauro Rodrigues Penteado.

Instado outrora a se manifestar sobre o tema, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), no Agravo de Instrumento nº 0037321-84.2011.8.19.0000, de relatoria do desembargador Milton Fernandes de Souza, determinou a exclusão do direito de voto de determinado credor justamente pelo exercício abusivo do direito.

No Estado do Rio Grande do Sul, os argumentos acima delineados foram bem colocados tanto na Comarca de Sapucaia do Sul quanto na Comarca de Venâncio Aires, na qual o magistrado – ao se deparar com situação análoga à observada no Rio de Janeiro – reconheceu que determinada instituição financeira, “sabedoura de um direito potestativo de determinar o futuro da recuperanda, abusou de suas prerrogativas” ao fazer exigências desarrazoadas da empresa, razões pelas quais se aprovou o plano de recuperação judicial por força da equidade, evitando, assim, fosse consubstanciado na prática o brocardo ciceriano da “summum jus, summa injuria” (exercício do direito em excesso gera injúria excessiva), ponderado há anos pelo Banco Mundial.